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Sul21
Nilce
veio de São Paulo para o Rio Grande do Sul com o primeiro marido para
refazer as bases da AP no estado
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Lorena Paim e Nubia Silveira
Os olhos claros, brilhantes, vivazes, o riso fácil e os gestos
incontidos revelam a psicopedagoga, feliz com a família que construiu.
Quem desconhece o passado de Nilce Azevedo Cardoso não imagina que tem à
sua frente a ex-integrante da Ação Popular (AP), torturada no DOPS
gaúcho e na Oban paulista. Mulher corajosa, forte, apesar do seu tipo
mignon, ainda luta para superar as marcas deixadas pelos socos e choques
que recebeu e as horas passadas no pau de arara. Seu útero foi
queimado, o esterno quebrado e a coluna precisou receber uma placa e
alguns pinos para se manter no lugar.
Mais de 40 anos depois, ela lembra aquele período e diz que faria
tudo outra vez. “Nós não estamos em época de reconciliação, mas de
reconstrução de um novo estado e todos deveriam ser julgados”, acredita
ela, falando sobre os torturadores e os mandantes da ditadura. Radicada
no Rio Grande do Sul, orgulha-se de ter recebido este ano o título de
Cidadã de Porto Alegre, da Câmara de Vereadores, e a Medalha Mérito
Farroupilha, da Assembleia Legislativa.
Para o Sul21, Nilce, que usou durante a
resistência, entre outros, os nomes de Vera e Mônica, deu mais do que
uma simples entrevista. Deu um depoimento, sem censuras, sobre sua luta
contra a ditadura e a tortura que ainda é praticada no Brasil.
Sul21- Como você se sente ao falar sobre a prisão e as torturas que sofreu durante a ditadura?
Nilce Azevedo Cardoso – Foi algo bastante brutal. Levei muito
tempo para poder falar sobre isso. Atualmente me sinto à vontade porque
estou fazendo disso uma parte da minha militância, para que as pessoas
fiquem sabendo, e para que a gente possa buscar justiça. Para que se
possa falar e conhecer a fundo, parece que há muito caminho a percorrer.
Se antes falávamos de uma ditadura que parecia longínqua e de uma
tortura que parecia inexistente, hoje é só entrar em uma delegacia e a
gente vê pau de arara, gente apanhando. Temos que pedir justiça em todos
os sentidos: onde estão nossos mortos, quem os torturou – se estavam (a
ditadura e seus agentes) defendendo uma coisa em que acreditavam, por
que esconder os corpos? Foi uma luta que começou com familiares dos
desaparecidos, e temos muito a fazer ainda porque os poderes públicos
demoraram e demoram muito (a lutar pela verdade), por pressão
certamente.
“Levei
muito tempo para poder falar sobre isso. Atualmente me sinto à vontade
porque estou fazendo disso uma parte da minha militância” | Foto:
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Não conseguimos ainda pegar a raiz da violência”
Sul21- Por que somente agora se fala sobre desaparecidos, torturados, presos?
Nilce - Nada se faz de uma hora para outra. É tudo
absolutamente montado para se ter uma ditadura. Para se ter uma
democracia também. Todos os movimentos começaram a aparecer após a
redemocratização do país e, assim, surgiram as condições objetivas de
fazer as comissões da verdade. É tanta violência na sociedade que temos
que procurar as origens. A violência está legitimada, nas famílias, nas
cadeias, na sociedade. Começou-se a estudar esse tema nas academias. E
os governos começaram a pautar sobre isso.
Sul21- O que provoca a tortura?
Nilce - Ajudada pelos filósofos, a gente entende que a
humanidade foi sempre violenta. O bem, o mal, o amor, tudo isso é fruto
de uma construção. Não conseguimos ainda pegar a raiz da violência. Que
civilização nós criamos que permite isso? Perdemos há pouco o líder
sul-africano Nelson Mandela, que levantou a questão do preconceito e
passou mais de 20 anos preso. Então, é uma luta grande que, por ser
molecular, teria que ser de todo o mundo. Quem puder falar que fale
sobre o que aconteceu, mesmo que doa, que dê pesadelo à noite. Ainda
hoje sonho com a tortura.
Sul21- Ao falar, você revive aqueles dias de prisão e tortura?
Nilce - Revivo de outra maneira. Tive 17 anos de psicanálise e
pude reviver muita coisa. Sofri durante muito tempo de uma amnésia muito
grande, anos que não me lembrava de coisa alguma. Presa e torturada no
DOPS em Porto Alegre, eu acabei entrando em coma. Fui para o Hospital
Militar, depois voltei à prisão. Em geral, os médicos costumavam liberar
(os torturadores) para continuarem a tortura. Foi tão traumático aquele
momento que, pendurada no pau de arara, tendo sido queimada e levado
choques por toda parte, o corpo perdeu o sentido de proteção. Aí o
psíquico ficou fragilizado. Quebraram meu osso esterno a socos. Entrei
em coma, o que agora me parece uma defesa. Apanhei muito na cabeça, me
deram muita medicação. Hoje tenho cirrose autoimune, não se sabe como
veio. Quando cheguei na Oban, em São Paulo, não consegui chamar ninguém
da minha família, não lembrava do nome de pai, mãe, irmão, para ligar
para eles.
“Pedro Seelig estava ali. Nilo Hervelha me batia toda hora”
Sul21- Sabe os nomes dos seus torturadores?
Nilce - Sei de alguns. Pedro Seelig estava ali toda hora,
lembro de Nilo Hervelha toda hora me batendo. Muito tempo depois, uma
vez, por acaso, dei uma cruzada com Pedro Seelig num corredor,
reconheci-o pelo cheiro.
“A revolta contra a tortura me vem na forma desse sentimento interessante que é de luta”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21- Que sentimentos ficam da tortura?
Nilce - Sentimento de indignação, por acontecer e continuar
acontecendo uma coisa dessas. Essa revolta me vem na forma desse
sentimento interessante que é de luta. Um ódio que não me tortura mais,
ao contrário, me empurra mais para a luta. Um horror tão grande que não
tem nome, é inimaginável o que uma pessoa sente pendurada no pau de
arara, o corpo absolutamente entregue, as blasfêmias que as pessoas
ficam falando, a gente nua de modo que se perca nosso contorno afetivo.
Para que a gente passe a ser um objeto, uma coisa qualquer que eles
possam fazer o que bem entendem (e dizem isso).
Sul21- Você tomou a decisão de não reagir durante a prisão.
Nilce - Pela função que eu ocupava e pelas coisas que eu sabia,
percebi quem tinham entregue o meu nome. Naquele momento eu tinha duas
saídas: ou eu gritava ou ficava muda. Eu tinha certeza de que eu não ia
falar nada e que ia morrer. Pensava: quero morrer lutando ou entregando
meus companheiros? Por maior que fosse horror, o medo, eu fui ficando
cada vez mais muda.
“Às vezes só tirar a roupa é absolutamente insuportável”
Sul21- Com o foi a sua ida do DOPS de Porto Alegre para o centro da Oban, em São Paulo?
Nilce – Isso de lugar pior ou melhor de tortura não existe. A
Oban era um centro de tortura organizado para isso, com dinheiro vindo
de empresários. Eu já estava um mês e meio presa em Porto Alegre.Tinha
muita coisa aberta, as pessoas já tinham falado. Eu estava muito mal
fisicamente e talvez por isso não fui para a chamada cadeira do dragão
(cadeira de choques) na Oban. Às vezes só tirar a roupa é absolutamente
insuportável. Uma agressão que para as mulheres tem uma particularidade
maior. Dá muita vergonha, ódio. A ameaça quase tem o efeito da própria
tortura. Eu sofri outro tipo de tortura, pois estava debilitada, tinha
perdido sangue e muitos quilos, tinha infecção generalizada no intestino
e no útero. Muita gente sabia que eu estava presa e não iam me matar,
me fazer sofrer desaparecimento ou “suicídio” como se chamava. Eram
torturas mais psicológicas, quase sempre de noite, com luzes e som muito
altos.
Sul21- Quais as lembranças da Oban?
Nilce - Havia várias equipes de tortura na Oban, entre as quais
a de inteligência, que estudava o perfil de cada um (ao contrário de
Porto Alegre, onde Pedro Seelig era a cabeça para tudo). Sabiam que eu
vinha da JUC – Juventude Universitária Católica antes de integrar a Ação
Popular (AP) e viram nisso um meio de chegar em mim. Um dos
torturadores, Mangabeira, era muito supersticioso. Ele usava uma roupa
de candomblé, mas exageradamente. Uma noite, me levou para uma sala
enfumaçada e me disse: hoje nós vamos conversar com o diabo, quero ver
se você vai ficar em silêncio. Aí eu disse: o que estou vendo é o diabo
que me protege e não o que te protege, pois ele não é como você está
falando. Imediatamente ele me tirou dali. (Pode ser algo da minha
imaginação. Na Oban tinham me tirado toda a medicação. Pode ter sido
alucinação? Não sei.)
“Eles queriam pegar toda a liderança da AP e liquidar, o que significa matar”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Até quando ficou presa em São Paulo?
Nilce - Fiquei um mês na Oban. Como eu sou paulista, tinha
militância em São Paulo. Eles queriam saber as ramificações, para acabar
com a Ação Popular. Eles queriam pegar toda a liderança e liquidar, o
que significa matar. No ano seguinte, 1973, tivemos dez mortes. Paulo
Stuart Wright, um de nossos dirigentes, é desaparecido até hoje. Quando
voltei para o Dops em Porto Alegre, todos nós saímos da prisão, pelo
trabalho do meu advogado Eloar Guazzelli. Foram quase seis meses presa
no total. Nos soltaram porque não acharam provas. O que acharam sobre
mim? Que era operária, militante estudantil, tinha pichado rua. Quando
sai, tinha que me apresentar semanalmente na auditoria militar. No
final, o processo foi arquivado.
Sul21 – Qual a origem da sua militância?
Nilce – Primeiro entrei na JUC – Juventude Universitária
Católica e em 1967 fui para a AP, tinha terminado a faculdade de Física
na USP. Passei para o que se chamava de “serviços”, fazendo a ligação
entre os dirigentes, tudo o que fosse organizacional (por isso conhecia
todos eles). Fazia depois a política de integração na produção, como se
chamava todo o trabalho com os operários. Fui ser operária, aprendi
desde como me comportar até como era a vida delas. O pessoal daqui de
Porto Alegre tinha caído, o movimento estava desarticulado. Antonio
Ramos Gomes, meu primeiro marido, veio para cá, ficou na coordenação, e
eu vim junto, trabalhei na Renner, fábrica de tintas. Em São Paulo,
trabalhei na Rhodia.
“Eu era muito dura. Achava: se entrou na luta, tem que aguentar”
Sul21 – Como foi sua prisão?
Nilce - Em 11 de abril de 1972 fui sequestrada num ponto de
ônibus onde a gente costumava se encontrar. Fiquei sabendo quem me
delatou. Eu era muito rígida. Achava: “se entrou nessa luta, tem que
aguentar”. Por exemplo, alguém ir para a televisão e se declarar
arrependido eu achava o cúmulo. Mas depois percebi que o ser humano não
aguenta as torturas, tem um limite e daí fala. Por exemplo, botaram o
filho de um companheiro nosso pendurado no meio do oceano, ameaçando
jogá-lo. Esse era o limite dele. Passei a ver filmes, como A Memória que
me Conta, de Lucia Murat, Mentiras que me contaram, Que bom te ver
viva, ambos com Irene Ravache. Hoje, com 68 anos, tenho outra
compreensão. Entendo que o ser humano tem limites e cada um tem o seu.
“Perdoo meus companheiros de luta. Aos torturadores cabe justiça”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Hoje você tem outro olhar, de perdão?
Nilce - Perdão aos meu companheiros de luta, sim. Aos
torturadores, não cabe essa questão, cabe justiça. A eles e aos
ditadores, a todos os mandantes civis e militares. A eles cabe serem
julgados e condenados pelo que fizeram. Nós já fomos julgados. Não é por
acaso que estão fazendo toda essa farra dos mensaleiros, tem outros dos
quais não se fala nada. Porque aí se falaria de outras justiças, de
outros processos.
Sul21- A propósito, Mandela falava em “reconciliação” na África do Sul. Essa palavra caberia aqui?
Nilce - Não se trata disso no nosso caso. Mandela estava num
país dividido. Nós não estamos nessa época de reconciliação, mas de
reconstrução de um novo estado e todos deveriam ser julgados. Todos os
mensaleiros, por exemplo, devem ser julgados. A justiça tem que ser
feita. Mesmo com aqueles que, na tortura, nos davam água, um doce, como
uma investigadora fez comigo. Os argentinos já fizeram isso
(julgamentos, justiça), os uruguaios também. Na nossa história isso vai
significar muito, porque estamos vivendo a impunidade. Não sei se Dilma
vai precisar desse exemplo do que Mandela fez para governar. Nós
conseguimos um estado de direito, estamos construindo uma democracia.
Ela teve que fazer alianças espúrias, é uma mulher de fibra que está
aguentando muita coisa.
Sul21 – Qual o papel da JUC e outras organizações religiosas na luta contra a ditadura?
Nilce - Há alguns que acreditam nos valores morais da religião.
Todos esses movimentos de juventude (dentro da Igreja Católica)
surgiram quando perceberam que a Igreja, como instituição, estava
apoiando o golpe. Então, montaram essas resistências. Ver, julgar e agir
era nosso lema. Houve padres que foram barbaramente torturados. Então,
surgiram outras necessidades que deram origem a movimentos mais
efetivos, no sentido de tomada do poder. Na AP fazíamos trabalho de
conscientização para um dia vir a tomar o poder, e discutíamos essas
questões com os companheiros da luta armada.
“Ao sair da prisão, sofria de paranoia, de fobia”
Sul21 – Como foi a sua vida após sair da prisão?
Nilce - No início não andava sozinha, tinha que ter alguém
junto. Sofria de paranoia, de fobia. Que bom te ver viva é o título de
um filme recente, que foi fundamental para minha retomada à vida. Passei
a trabalhar a ideia de porque eu estava viva e os outros morreram. E
também minha analista me dizia: pare de ter pena de si mesma, não foi
assim que você foi educada por seus pais. Voltei a ser professora de
Física, depois psicopedagoga e psicanalista. Não pensei em sair do país,
quis ficar junto dos meus amigos, de minha família. Entrei em vários
movimentos que me davam respaldo político e afetivo. Militei no MDB, no
IEPES, na CUT e no PT, principalmente no movimento de mulheres. Sempre
ligada aos movimentos pelos direitos humanos.
“A
tortura é um ato de maldade, pensado para o aniquilamento do ser
humano, em todos os níveis”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Em certa ocasião de sua prisão e tortura, você pensou em parar de respirar…
Nilce - A tortura é um ato de maldade, pensado para o
aniquilamento do ser humano, em todos os níveis. Quando te despem, dão
socos, os choques em todas as partes do corpo, inclusive vagina adentro
para queimar o útero, é uma dor que não saberia descrever, de tão
intensa que parece que está na alma. No pau de arara, na posição de
trancar todas as articulações, a circulação não existe, como se tudo
estivesse represado ao longo do corpo. Parece que cada célula foi
amarrada. Hoje, meu médico diz que tenho que curar célula por célula.
Quando veem que a pessoa está sem circulação, entregam para alguém e a
gente fica andando até voltar à tortura. Eu pensava que não iria
sobreviver, pensava: se estava já condenada à morte, me matem de uma
vez. E depois pensei: e se eu parar de respirar? Fiquei bastante tempo
(sem respirar). Mas o instinto de sobrevivência é maior. Psiquicamente
isso teve consequências traumáticas sérias, pois ninguém pode atentar
contra a própria vida. Por isso talvez entrei em coma e, mais tarde,
tive amnésia.
Sul21 – Os choques no útero teriam a finalidade de destruir a sua essência feminina?
Nilce - Naquela hora falavam algo que destrói: mãe você nunca
vai ser. Atingia minha essência de mulher. Com os choques eu me sentia
estuprada. As palavras deles, quando me xingavam, era a mulher que
estava sendo espezinhada. É um milagre da vida, com o útero que tive,
depois conceber dois filhos – Semíramis e Paulo – e agora ter quatro
netas. Milagre que vem da quase impossibilidade física de ficar grávida.
No parto perdi muito sangue, mas a filha nasceu normal.
A questão da mulher sempre foi estudada e usada por eles. E isso
também foi a fonte de minha possibilidade de superação. Quando saí do
coma, pedi uma gilete; surpresos, imaginaram uma tentativa de suicídio.
Mas não, era para me depilar, pois estava peluda. E não queria ir para a
tortura peluda. Aquilo me recuperou algo do feminino e de ser gente.
Pedi para minha mãe trazer esmalte, pente, coisas mínimas. Quando
cheguei na Oban de unha pintada, você pode imaginar o que as outras
acharam. É uma questão de brio e isso me salvou. Por exemplo, para
dormir na prisão usava pijama e chambre.
A vida na clandestinidade incluía trabalho, reunião com os operários, distribuição de panfletos
Sul21 – De onde vem sua resiliência, a força e a capacidade de superação?
Nilce - Acho que vem dos meus pais, os dois eram professores. A
gente aprendeu a se virar, a nunca largar a peteca. Eu era bailarina
clássica quando criança e não tinha essa história de cansaço. A vida na
clandestinidade incluía trabalho, reunião com os operários, depois
distribuição de panfletos. E ainda lavar a roupa, tarefas domésticas
normais. E fazer as tarefas internas, como escrever as cartas com
códigos para os dirigentes. A que horas dormia eu não sei. Um grande
companheiro, Diógenes Sobrosa, braço direito do Lamarca, comentava
comigo, quando eu já tinha saído da prisão, sobre as cartas que eu
escrevia em código e passavam pela censura: “que cartas medíocres, sem
estilo…”
Sul21 – Quando você se deu conta de que estava voltando à vida após a prisão?
Nilce - Felizmente tenho essa história de alegria. Tenho um
exército de anjos da guarda, além de pessoas importantes, amigos que
foram fundamentais e me davam sustentação afetiva, meu segundo marido,
Antônio Norival Soave. Logo comecei a trabalhar, dando aulas. Fiz
biodança, que enfatiza a questão do toque. Acho que o nascimento dos
meus filhos me recuperou. Apesar de meu útero machucado, com
sangramento, minha filha nasceu bem. Meu segundo marido era operário,
ficou presos por dois anos, quando saiu já tinha elaborado um pouco (a
tortura sofrida), aí eu vejo diferenças com essas pessoas, que saíam
para as ruas mais recuperadas. Eu levei muito tempo, tive troca de
personalidade e outros problemas, até fazer uma análise bem feita, para
buscar uma unidade, uma identidade. Meus filhos tinham no pai um
sustentáculo afetivo. Hoje, eles não falam sobre a tortura.
“O nascimento dos meus filhos me recuperou”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como foi o diálogo com seu pai sobre sua militância?
Nilce - Ele estava morrendo e me perguntou se tinha valido a
pena o que passei. Eu disse que não escolhi ser torturada, mas escolhi
ir para a resistência e isso valeu a pena; faria de novo, talvez
corrigindo alguns caminhos. Minha vida não é centrada na tortura que
senti, eu fui torturada durante a ditadura, hoje sou uma mulher
resistente, indignada e continuo lutando.
Sul21 – E o legado à nova geração?
Nilce - Eu sou uma entre muitas que resistiram, fazemos parte
de uma geração generosa que doou inclusive a vida para uma mudança na
sociedade. Nosso legado é de alegria por ser parte dessa geração e ter
isso como valor. Valor que vemos hoje no jovem que sai às ruas para
lutar pelo que quer. Minha história já está caindo no vestibular. Nossos
valores continuam muito firmes, temos que juntar as lutas todas para
criar um novo mundo. É uma esperança que deve ser retomada. Amanhã será
um novo dia, este era o lema de minha mãe. É preciso se indignar contra
qualquer injustiça, aceitar as diferenças. Não nascemos para ser robôs,
ao contrário do que o capitalismo pensa. É um momento especial para
trabalhar junto com esses jovens contra qualquer forma de tortura e
violência, não só daquela época, mas de hoje, para juntos podermos
construir uma sociedade solidária, democrática e igualitária, que aceite
as diferenças, sem discriminações de qualquer tipo.